segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Li e chorei

Nas minhas deambulações pelo Facebook deparei-me com um texto numa página (Fim da exploração animal se quiserem ver) que me embargou a alma e me fez tremer a voz.
Pedi licença e vou partilhar porque nesta época que vivemos faz falta parar nem que seja para ler e por uns segundos pensar na vida e no que esta errado.
Não sei de quem é, se é imaginado ou não mas se foi é apenas o expressar de tantos rostos anónimos que passam por nós todos os dias e nem notamos.
Fica aqui o meu contributo!

"Quando te fui buscar ao canil onde te aguardava a injecção letal, passados os dias regulamentares da espera gerida pelo veterinário, o meu primeiro impulso foi chamar-te Zola, por ser o nome de um escritor que li quando era novo e que reli muito mais tarde. Mas depressa desisti, pois neste mundo dos sem-tecto nem afecto um nome assim só iria causar perplexidade e colar à minha testa o rótulo de «
intelectual», um pouco infame e provocatório entre mendigos. Ninguém aqui tem nada que saber quem sou, de onde vim, se tive ou não família, se fui leitor de muitos ou poucos livros. Isso faz parte da vida que morreu comigo antes de me perder nesta vida, que em parte escolhi e em parte me foi imposta. Há dimensões que nunca podem nem devem misturar-se nem confundir-se.

Foi assim que optei por te chamar Lobito, recordando os dois anos passados na guerra em Angola e uns dias de licença, com aquela que era então a minha mulher, nas areias limpas e ardentes da praia da baía Azul, perto dessa cidade que a guerra poupara.

Talvez não acredites, mas mesmo em guerra uma pessoa pode sentir-se feliz, desde que não esteja a combater e seja jovem e saiba que as coisas tristes e amargas não hão-de durar sempre. Muitas vezes voltei para a frente de combate e vi matar e vi morrer, mas muito pior foi a morte interior que o desencanto me trouxe com o passar dos anos e que me transformou em soldado deste exército de espectros em que nem patente tenho e que anda cosido com as paredes para ninguém ver os rostos que tem e para não correr o risco de ser reconhecido por algum companheiro de outras guerras, de outras paragens, de outras andanças. Haverá situação mais triste do que alguém como eu aproximar-se de um homem da sua idade e ele, depois de apurar a visão, fazer questão de saber: «Desculpe, mas você não é o não-sei-quantos que foi meu colega no liceu, ou meu alferes na tropa e que morava ali para as bandas de Alvalade, ou de Campo de Ourique ou do raio que o parta?» E nessa altura que resposta se há-de dar, que conversa se pode manter? Que fingimento ardiloso se pode engendrar para se poder ficar em paz?

É por isso que os soldados deste exército de espectros andantes deixam crescer a barba, no caso de serem homens, enfiam chapéus muito largos e desbotados que lhe ocultam parte do rosto e emagrecem tanto que ninguém se atreve a remexer no magma ainda fumegante da memória para tentar descobrir de onde conhece aquela cara, aquele olhar, aquela característica inclinação da cabeça.

Vá, dorme descansado, que esta noite sou eu que fico de sentinela, não vá algum skinhead tentar roubar-te ou mesmo matar-nos com as pancadas certeiras de um taco de basebol. Por vezes, é esse o ponto final que nos traz o sossego tantas vezes cobiçado."

14 comentários:

Alexandra Santos disse...

Uma mensagem de amor!
Estas mensagens de carinho deixam-me derretida e com o coração a bater forte! Quando alguém se consegue expressar assim...

um beijo! 

Unknown disse...

Há situações em que nem mesmo o mais fiel amigo humano é capaz de acompanhar... e é aí que entram os de quatro patas. Afinal de contas reza a lenda que estes é que são os amigos do homem.
Uma crítica (ou reparo) à vida que muitos dos antigos militares tiveram no ultramar, e que depois a pátria abrilesca tratou de desprezar.

Pink Poison disse...

Realmente, a história de cada um... pode ser um fardo ou apenas factos... Muito real mas muito pessoal. Gostei. Beijo

Pretty in Pink disse...

Que texto mais forte e bonito!!

Beijinho*

A Loira disse...

Que triste.

Paula disse...

Alexandra,

È digno de dividir com todos não é?

Beijos

Paula disse...

Fire,

São esses os verdadeiros e únicos amigos!
Não encontras em mais lado nenhum

Beijos

Paula disse...

Pink,

Todos temos a nossa cruz para carregar mas a verdade é que se deixássemos de olhar para o lado tudo melhorava.

Beijo

Paula disse...

Pretty,

Sem dúvida querida.

Beijo

Paula disse...

Vera,

E real.

Beijos atleta

Teresa Santos disse...

Olá Utena,

Li, calei, engoli em seco.

A sociedade que temos, os dramas que temos.

E um sentimento de respeito profundo por quem assim sofre.
E tantos, tantos são!

Beijinho


Paula disse...

Teresa,

Retrato de um tempo onde não se perde tempo a olhar o semelhante com olhos de ver!

Beijos

AC disse...

um texto muito real e muito duro de alguém que convive com a sua desgraça com uma imensa consciência do que o rodeia. Demasiado doloroso. tenho pena destas pessoas, cultas, educadas, bem formadas, sensíveis e que as circunstâncias atiraram para a rua, e agora já não conseguem sair da espiral de queda onde se encontram.

Paula disse...

AC,

A realidade que nos rodeia e que tantas vezes fingimos que não vemos.

Beijos